24 de abril de 2011

Domingo de Páscoa























 Crónica de Domingo de Páscoa para Margarida Fontes, Manuel Alves e Daniel Lobo


Anteriormente guardada numa das sacristias, geralmente a de baixo onde também se confessava, hoje colocada na nave central da Igreja Matriz de São Filipe, a imagem de Nosso Senhor dos Passos impressiona pela sua imponência e pela sensação de dor que transmit...e: num estrado de mogno de quase dois metros de largo, o Filho de Deus feito Homem, vergado sob o peso de uma enorme e negra cruz de madeira, vestido com uma túnica púrpura que lhe cobre todo o corpo, a fronte rasgada pela coroa de espinhos, os cabelos desgrenhados e o olhar vítreo de quem já antevê a morte, arrasta-se penosamente para a remissão dos nossos pecados e para que um dia o possamos ver regressando em Todo o Seu esplendor e Glória.
As histórias á volta desta imagem são inúmeras a começar pelo seu peso de mais de duzentos quilos exigindo, por vezes, exercícios de autentico malabarismo durante o seu percurso pelas ruas íngremes de São Filipe no dia da procissão. Antigamente, como nos dá conta Teixeira de Sousa num dos seus melhores contos, “O Encontro”, as ruas eram regadas e os notáveis do burgo que disputavam o privilégio e a honra de transportarem o Filho de Deus, não o prazer pois nos dias seguintes teriam de tratar dos ombros esfolados, apoiavam-se em rijos cajados não fossem escorregar e, desta arte, aumentar o sofrimento de Nosso Senhor, escaqueirando-o todo nas pedras basálticas da calçada. Foi, aliás, com um desses cajados que um dos carregadores, esquecendo-se da nobre missão que desempenhava, furioso com as invectivas que em surdina lhe dirigia uma senhora que na fila se encontrava, não se conteve e descarregou-o com toda fúria na cabeça da coitada causando-lhe a morte e desencadeando uma sucessão de acontecimentos e animosidades que até hoje tem eco no tecido social de São Filipe.
Em meados da década de setenta do século passado pontificava na cidade um individuo de cor negra, hercúleo e valente, pescador de profissão e guarda-redes aos Domingos, nos sempre rijamente disputados “Académica versus Benfiquinha”, onde, nas balizas deste ultimo, a sua agilidade impressionava. Brigão, raro também era o fim-de-semana em que não se envolvesse em confronto com os poucos agentes da polícia de então… De uma das vezes, em plena quermesse na Praça “João Paes”, tiros para o ar interromperam bruscamente o coro de risos e a música que vinha do coreto: de pistola em punho, dois agentes desciam as escadas perseguindo o vulto negro e ágil que a uns bons cinquenta metros á frente, subitamente, enfiou-se por uma das portas laterais da Igreja Matriz, deixando, toda a gente espantada pois, encontrando-se as outras portas fechadas, seria presa fácil para os homens da lei que esbaforidos, momentos depois entraram pela casa de Deus adentro fazendo ressoar as suas botas no velho soalho. Todavia, minutos depois voltavam a sair, perplexos e desorientados: do indivíduo, nem fumo… Evaporara-se simplesmente… Tinham procurado em tudo quanto era sitio, até nas torres, atrás do altar e do velho relógio, dai estarem cobertos de poeira… Apareceu o padre, alertado por tamanho burburinho… Também procurou… Nada… Deve ter pulado a janela, aventou alguém… Mas um simples olhar para a altura das mesmas dava conta do absurdo de tal hipótese…
Nunca se percebeu porque artes e outros tantos milagres teria o energúmeno desaparecido das malhas da lei… Até que, há dias, mais de trinta anos passados, tendo-o encontrado numa visita, já sem o vigor e a irreverência de outrora, mas sempre bem-disposto, não me contive e perguntei-lhe:
- Preto, aonde foi que te meteste, naquele dia, na igreja, que a policia por mais que te procurasse não conseguiu encontrar-te?
A face negra iluminou-se, os dentes alvos abriram-se num largo sorriso e a resposta que se seguiu, fez-me descoser numa gargalhada que fez com que as caras sérias dos que nos rodeavam se virassem reprovadoramente:
- No único lugar aonde não me iriam procurar: debaixo da túnica de Nosso Senhor dos Passos… Que policia teria a coragem de arregaçar as vestes de Nosso Senhor?...

por: Fausto do Rosário

Poema novo

Example
















Tem dias que estou botânica, afoita à flor, assim rosa.

Tem dias que estou em doida, adormecida, de ambulante.

Tem dias que estou radioactiva, átomos de versos, bomba.

Animal, às vezes de lasciva, outras vezes em toca e troca.

Mulher, que dentro me passeia, em sua estranha prosa.

Poeta que se evade da matéria, em tanta pedra, sou eu.

Poeta dos dias em que estou, afoita à dor, enfim rosa.

pura eu

22 de abril de 2011

Vamos celebrar a Bandeira

Eu, e Waldomiro Dias, Tamboreiro chefe

















"Os momentos" foi durante anos um portal de divulgação cultural, e as Bandeiras da Ilha do Fogo sempre foram abordadas neste sítio. Primeiro, porque são manifestações tradicionais de uma riqueza cultural e simbólica que extravaza a ilha; segundo, pela movimentação que provocam, constituem um motivo incontornável de união da nação global cabo-verdiana.

Hoje, apenas uma identificação pessoal traz-me para esta conversa sobre a Bandeira de S.Filipe. Um convite emotivo, diria!

S.Filipe, na segunda quinzena de Abril, distancia-se, de todas as formas, da cidade pacata do dia-a-dia que todos conhecemos. Diariamente, nesta época, chegam "a bila" uma média de 300 pessoas; as pensões e os hotéis ficam super lotados, as ruas enchem-se, a noite a o dia confundem-se! É simplesmente maravilhoso.

A Bandeira de S.Filipe coincide com a festa do município que também culmina no dia 1º de Maio. A Casa da Bandeira e a Câmara Municipal, cada um a seu modo, e numa espécie de concorrência, programam os cerca de 8 dias de festa, e as pessoas escolhem.

Os bailes no presídio, da responsabilidade do município, movimentam milhões a cada ano que passa, e o público corresponde; assim como as corridas de cavalo, e as partidas de futebol.

Apesar dessa disputa programática, o lugar simbólico da Bandeira de S.Filipe (as tardes de pilon, o sentido de promessa, a fé no Santo, os rituais, os personagens) resgata-se e preserva-se a cada ano que passa, e os festeiros têm feito um grande esforço nesse sentido.

Entretanto, continua a ser esse o desafio maior dos cultores das bandeiras: reinventar a fé, motivar os mais jovens e celebrar com sentido de pertença o legado dos nossos ancestrais. De recordar que além de S.Filipe, as bandeiras de S.Pedro, S.João e Santa Cruz são as mais celebradas na Ilha.

Bem haja, Bandeira de S.Filipe, uma festa que sintetiza a riqueza cultural de Cabo Verde, traduz a simbiose antropológica destas ilhas, e a comunhão de uma nação dispersa, mas cada vez mais convergente na sua idiossincrasia. Vamos todos celebrar a Bandeira.

19 de abril de 2011

Flash (black)

Marc Cary














 
 
 
(...) Sinto uma forte melancolia, um sentimento especial e inesperado quando ando pelas ruas desta cidade. Confidência de Alain Jean-Marie. O pianista de Guadalupe disse que irá transformar esse estranho sentimento em música.
"Cresci com cabo-verdianos em Rhode Islands"... (Marc Cary, pianista da banda de Cindy Blackman Santana)
(...) what a beautiful place and such warm lovely people. Can´t wait to come back! (Cindy Blackman Santana sobre Cabo Verde)

11 de abril de 2011

Festival Vis a Vis vai ser anual

Banda Ex-Pavi, um dos vencedores do concurso



















Cabo Verde recebeu na semana passada o Concurso Vis-a-Vis, iniciativa da Casa de África, numa parceria entre cabo-verdianos e espanhóis (com várias instituições envolvidas), visa recrutar novos talentos cabo-verdianos do mundo da música. Esta primeira edição escrutinou mais de cem concorrentes para uma selecção de 16 propostas artísticas. Sobressaiu deste certame, que não deixou de ser inédito nestas paragens, a variedade das ofertas musicais em palco e ficou patente que os artistas cabo-verdianos percorrem hoje um vasto naipe de estilos e géneros, dos tradicionais aos contemporâneos. Outro aspecto a sublinhar nesta espécie de casting alargado, que aconteceu na Praça Luis de Camões no Plateau, foi a montagem dos espectáculos com interacção do público que, em certos momentos, reagiu como se um festival de música se tratasse. A par disso, a 'movida' criada na Cidade da Praia, em véspera do Kriol Jazz Festival.















O Director da Casa de África, Armando Rua, diz-se fascinado com Cabo Verde, com o potencial artístico dos jovens, e com a diversidade encontrada nestas paragens no domínio da música. É por essa razão que, adiantou-nos "o ministro da cultura decidiu fazer um festival Vis a Vis todos os anos em Cabo Verde". Os programadores e agentes musicais presentes no certame também partilham do fascínio.Do concurso, duas bandas vão ser selecionadas para espectáculos em Espanha.

Fotus: Casa de África

4 de abril de 2011

Claire Andrade-Watkins: um abraço à Terra Mãe

Claire Andrade-Watkins

























"Some Kind of Funny Porto Rican? A Cape Verdean American Story” (SKFPR ). Este filme mereceu uma nota há poucas semanas nesta página, mas o melhor estaria certamente por vir, depois de uma conversa com a cineasta, Claire Andrade-Watkins. Cabo-verdiana de segunda geração, professora na Emerson College, docente visitante na Brown University, e fundadora /directora de SPIA Media Produções.

No começo da nossa conversa quisemos saber quais as razões, à par do fazer cinema, que ditaram a estrada desta tão aclamada e tocante produção. Um filme que conta a saga dos cabo-verdianos em Fox Point, estado de Rhode Islands. Da sua fundação pelos cabo-verdianos à sua destruição, por motivos de urbanização, ela desfia a história de Fox Point.

Num universo onde as minorias nunca foram protagonistas, Andrade-Watkins quis quebrar as regras e contar a memória do seu povo em primeira pessoa - literalmente, é o que faz ela no filme. “Na qualidade de estudante de história /PhD, passei a conhecer o peso da história “oficial”. Aprendi que quem escreve uma história escolhe um roteiro.” É isso que Claire Andrade acaba por fazer em Some Kind of Funny Porto Rican? A Cape Verdean American Story. Resgata a memória, a história e a cultura de um povo atlântico que se aventura num universo estranho e reinventa uma identidade complexa e em permanente busca de integração.

A comunidade, a memória ...


Demolição da casa de Mamai Alves 88 Alves Way -
último simbolo da comunidade CV em Fox Point


A primeira reacção ao filme foi na própria comunidade que recebeu o documentário como um “sólida reflexo da sua voz, memória e história”. O filme foi um fenómeno, diz Andrade-Watkins. Muitos dos participantes desse trabalho, que durou 10 anos a produzir e ficou pronto em 2006, já faleceram e isso, acrescenta ela, empresta cada vez mais o valor ao trama.
O contacto permanente com a comunidade aquando da produção do filme foi importante, admite a autora. Houve até episódios curiosos. “Muita gente teve problema com o título Some Kind of Funny Porto Rican? De todo o modo, isso reflecte a percepção que se tem de nós nos Estados Unidos. Mas graças à contribuição da comunidade, chegamos ao acrescento: A Cape Verdean American”, diz Claire.

os momentos: Vejo que as questões da memória e da identidade caminham juntas nos teus projectos de cinema. Como esse tipo de trabalho pode contribuir para o debate sobre a identidade real, na diáspora e nas ilhas?

Claire Andrade-Watkins: Antes de mais, precisamos desmistificar percepções e confusões que foram projectadas em nós particularmente nos domínios de raça, identidade e história. Um dia havemos de estar cansados da discussão sobre “What are you”?
A mensagem dos trabalhos de Claire Andrade Watkins, vídeos e não só, passa por explorar a riqueza de valores (amor, fé, família, tenacidade, honestidade e trabalho) da comunidade cabo-verdiana nos Estados Unidos, captando as nuances e a força dessa diáspora multi-geracional e global.

The universal parts of who we are as interpreted through the eyes/mind/soul of someone born and raised in this remarkable community”, remarca.

Portal Atlântico

O actual filme da realizadora, Portal do Atlântico, obedece a mesma linha de pensamento: é o segundo filme de uma trilogia de documentários, depois de Some Kind of Funny Porto Rican, este filme fala dos cabo-verdianos hoje, mais concretamente daquilo que se perdeu e do esforço que se faz para manter o sentido de comunidade apesar da destruição de Fox Point.

Claire Andrade-Watkins faz uma profunda e enigmática discrição do seu novo filme. “Portal do Atlântico faz a história regressar a Cabo Verde em busca de “casa” apenas como meio de voltar a Fox Point, com a consciência de que ser cabo-verdiano é um estado de espírito e não apenas um endereço postal.
“A derradeira oportunidade de recapturar a história por parte daqueles que foram os guardiões da memória, da história, da cultura e da herança cabo-verdiana em Fox Point. Portal do Atlântico é um dos três recursos sobre essa genuína comunidade, a sua história de imigração, de deslocamento e de esperança”, completa.

Parada de Santo António em Fox Point (2009)

























Perante esse entrecruzar de memórias, em que o espaço ganha um lugar no desenho da identidade, quisemos saber como é que a segunda geração vive Fox Point, como a sua memória pulsa por Cabo Verde nos Estados Unidos.

“Aqueles da segunda geração, como eu própria, continuam a ter uma forte noção da cultura, língua e ligação com a primeira geração, nossos pais. Mas estamos preocupados com a terceira e com a quarta gerações. Sim, em Fox Point estamos a caminhar para a sexta geração. Muitos de nós, estamos empenhados em documentar e preservar a nossa história/memória e cultura. Muitos dos cabo-verdianos de origem como eu que já caminhamos para mais de 40 anos, devido à deslocação, regressamos e estamos a trabalhar arduamente para reclamar a nossa memória/história/ e legado para as futuras gerações. É uma batalha, penso!”

Claire Andrade-Watkins reconhece que o passado de Fox Point já foi. Mas acredita no futuro, e é nesse sentido é que pertence ao grupo que trabalha incansavelmente para um dia fazer a comunidade regressar a Fox Point.

Cinema nosso

O trabalho de Claire Andrade.-Watkins não se restringe à sua comunidade. Também ensina o cinema africano-americano e o cinema da diáspora africana, incidindo sobre as fórmulas de produção de documentários independentes. O seu mais recente trabalho académico publicado foi um ensaio sobre Ousmane Sembene e o cinema africano, nas edições Samba Gadjigo, Sada Niang Dakar, Senegal, Dakar,Senegal: Editions Papyrus Afrique, 2010.

Por fim, o cinema, cabo-verdiano/africano! Que cinema é esse? Cinema, enfatiza a realizadora quer dizer produção, exibição e distribuição por cabo-verdianos/africanos. Não é este o caso, e o grande desafio “para nós, é criar um cinema (uma mídia) com nossa voz, nossas histórias, e nossa audiência”. O grande desafio para Cabo Verde, para África.

Portal Atlântico está em fase de pós produção e a sua finalização está aberta a contribuição de todos através do conceito (kickstarter). Um projecto ambicioso, cujo modelo de produção pode servir de referência para projectos futuros similares.

"A Cultura é o produto importante do século XXI. Por isso, os cabo-verdianos não podem perder o seu filão cultural, sob pena da alienação. Para os cabo-verdianos da Diáspora, Cabo Verde será sempre a Mãe Terra. Cabo Verde tem a responsabilidade de perceber que uma grande comunidade identitária beneficiará todos nós na Nação Global Cabo-verdiana." Claire Andrade-Watkins, a primeira cineasta do mundo Cabo-verdiano.