A esta ilha nunca chegará a guerra,
A antítese do canto.
Aqui a beleza foi radical e silvestre
E num princípio não coube no rosto
Nem na mão
Nem na palavra
Aprecio muito o Nascimento do Mundo, obra de Mário Lúcio, que descreve com amor táctil as ilhas de Cabo Verde. Toca-me na alma esse trecho referente à Ilha Brava, terra de Eugénio Tavares, ali conhecido por Nhô Eugénio. Hoje, Dia da Cultura é forçoso fazer referência (e reverência) a essa figura, patrono da efeméride.
Os estudiosos consideram Eugénio Tavares como um dos grandes cultores da língua portuguesa, trabalhada em suas diversas formas. Exímio na prosa e no verso, mas também como polemista consequente de panfletos cívicos e políticos, ele é sem dúvida um dos nossos grandes patrimónios humanos. Era igualmente um cultor singular, senão mesmo figura modal, da língua cabo-verdiana, sobretudo nas suas defesas em prol da língua materna e nas suas composições musicais.
Eugénio Tavares considerava o reconhecimento da língua crioula, à par da portuguesa, como uma questão da cidadania. O bilinguismo que simboliza, em todos os títulos, a complementaridade do homem cabo-verdiano, mas que até hoje, apesar do discurso político, não foi assumido oficialmente.
Em verdade, Eugénio Tavares interpela-nos a um olhar não apenas historiográfico como também mítico. Entre sua gente, ele foi bem mais do que poeta, compositor ou polemista. Ele é lembrado, sobretudo, como uma figura mítica, protagonista de vários episódios lendários na ilha.
É nessa ilha, hoje marginalizada, que está a ser assinalado o Dia da Cultura, iniciativa que merece ser louvada. As inaugurações da casa/museu Eugénio Tavares e de uma estátua feita por Domingos Luísa são os pontos altos da comemoração. Um atelier cultural montado pelo Ministério da Cultura e seus institutos também faz parte do programa.
Do meu ponto de vista, creio ser pertinente analisarmos alguns sinais. Pensar efectivamente a Cultura, através dos seus vários agentes, conhecer a matriz cultural crioula, na sua diversidade e intensidade, olhar a Cultura como uma disciplina transversal e incontornável no desenvolvimento do país. Não apenas evocar de forma simplista a vertente mercantil, ou industrial, deste sector numa realidade como a nossa, em que comer e o emprego ainda são os grandes desafios.
Um recuo ao passado com a perspectiva do futuro é outro grande desafio. Perdemo-nos, muitas vezes, porque não conhecemos suficientemente o nosso passado. Não olhamos na sua plenitude legados como os de Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Baltazar Lopes da Silva, Amílcar Cabral e tantos outros. Precisamos cuidar dos nossos patrimónios, quer humanos, quer materiais. Com respeito e competência. Amor, principalmente.
E por que o desenvolvimento sócio integrado passa também pela Cultura, olhemos a Brava, ilha que recusa a antítese do canto, com outro senso e sentido. Um arquipélago frágil, como Cabo Verde, não pode cultivar tantas assimetrias. É desintegrador. Perigoso!
Sem comentários:
Enviar um comentário