Nhô Sopa e eu. |
Bandêra di Praia era a bandeira dos escravos, que depois da bandeira grande (restrita e elitista) juntava o povo na praia de Bocarrom, daí esse nome “Praia”. É o que nos conta João José Lopes Silva (Jota Jota), um dos nomes incontornáveis da história recente da Bandeira de San Filipe. Discorria-se sobre isso em casa de Nhônhô di Ilda, (no passado, um dos famosos jóqueis da Bandeira), na zona de Lém.
Há três anos, esses dois emblemáticos senhores decidiram reerguer a Bandeira di Praia di cá Cumanzinha (senhora já falecida que promoveu a festa durante muitos anos). À mesa, xerém e bode, e depois o tradicional caldo de bode e cuzcuz (prato de pobre). À volta dessa mesa simples, mas simbolicamente rica, estão alguns dos verdadeiros fazedores das bandeiras do Fogo: Waldomiro Dias, Idalina, Daniel Alves (Nhô Sopa), Nataniel e muita juventude. Espontâneos e alegres contam as mais diversas e rocambolescas histórias. À volta dessa mesa, onde todos são servidos, os significados e significantes da bandeira se confluem e sustentam a boa memória de vidas e passagens.
Waldomiro Dias gaba-se de nunca colocar na sua boca um gole de bebida alcoólica, e de cumprir rigorosamente o horário de refeição. Uma vida regrada a explicar tamanha lucidez e vigor. Já Idalina assume que o seu “alimento é uísque”. Essa dama, de 89 anos, confessou-nos que está pronta para ir colar em Washington. O visto de entrada nos Estados Unidos foi um presente de aniversário que ela conquistou sem esforço pelo seu jeito desembaraçado de ser. É o grupo de coladores e tamboreiros das bandeiras do Fogo que tem viajado frequentemente para o estrangeiro para mostrar os toques deixados por Tchitchiti (o criador dos diferentes toques de tambor das bandeiras). Neste momento, Waldomiro Dias, tamboreiro chefe, ministra aulas de toques de tambor a dezenas de alunos. Muitos chegam de fora.
Curioso! Nhô Sopa, o eterno colador, não esteve desta feita na Bandeira Grande, mas não podia faltar à festa de Praia. Com vista fraca, pernas trémulas e voz rasgada recebeu de forma inconfundível os seus confrades que vinham de longas jornadas de colaçan. Recebeu-nos, também a nós, que depois de alguma bizantinice e non sense em torno da Bandeira Grande, ansiávamos por um momento genuíno com sabor à real bandeira.
A forma de colar de Nhô Sopa continua singular: trepidante e contagiante! Um colar diferente, diríamos até indescritível, que nos cala fundo.
fotu: Fausto do Rosário
2 comentários:
Gostei do texto. Cá para mim, esta "Bandeira de Escravos..." não consigo imaginar Cabo Verde com escravos... e não sei por quê.
Eu acho k tu e o kim Alves terão muito a dar à memória colectiva do legado cultural da ilha da ilha do Fogo, que afinal está mais actual do que se poderia imaginar.
Estou aqui a imaginar algo em concreto.. ;)
É que todas as tradições bebem de suas histórias e estórias, e por enquanto, vamos tendo memória oral..
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