27 de março de 2007

O silêncio dos "nossos" inocentes


Assisti, domingo, acidentalmente, ao último episódio do programa "Grandes Portugueses" exibido há seis meses pela RTP. Retive duas frases particularmente fortes, ditas por duas participantes: "De facto, não é fácil ser-se Fernando Pessoa no país do Salazar" (apoiante de Pessoa), e "Este programa é um branqueamento do fascismo" (apoiante de Álvaro Cunhal).
Ao ver o programa lembrei da luta do meu amigo Fernando Conceição, no Brasil, a reivindicar uma indemnização para os afro-descendentes brasileiros. O mesmo solicitava também a redenção de Portugal e do Brasil, mercê da escravatura. É com tristeza que constatei como se torna cada vez mais utópica a luta do Fernando. Entrementes, a vítimas do Holocausto nazi têm sido indemnizados…
Foi um programa tenebroso, do meu ponto de vista, com António Oliveira Salazar a ser eleito o maior português de todos os tempos, numa final onde figuravam nomes como Vasco da Gama, Marquês de Pombal, Luís de Camões, Fernando pessoa, entre outros. E no fim do grande espectáculo é a insistência de todos, inclusive da apresentadora, a fazer crer aos telespectadores que aquilo não passava de um concurso...e que por isso mesmo não devia ser levado muito a sério.
Todavia, a simbólica vitória do Salazar vem consagrar, como foi dito no programa, todas as atrocidades cometidas por esse homem e a engrenagem por ele criada. E despreza por completo o processo histórico dos povos, inclusive o nosso, contra o autoritarismo fascista e colonial. Mesmo minimizando a consciencialização crítica dos votantes, pela cultura política pimba e ignorante, a atitude dessa televisão pública não passou de uma afronta aos valores da Democracia e dos Direitos Humanos. E o mais arrepiante, para mim, foi a forma leviana e apressada como trataram, alguns temas, como a escravatura, por exemplo, no decurso do referido programa.
Curiosamente esta Televisão, por razões que um dia alguém há de explicar, funciona em canal aberto nas ditas ex-colónias portuguesas, de que Cabo Verde faz parte, para o gáudio de alguns neocolonizados locais. O pior para mim, e para isso também deveria servir a soberania deste país, foi saber que esse massacre ideológico esteve a um clic de todos.
A RTP África, que de África só tem nome e intenção alienante, é o canal com maior poder em Cabo-Verde, emite programas, a seu critério, 24 horas por dia. Para quem não sabe, a Televisão Nacional emite apenas seis horas por dia e dificilmente consegue sustentar uma grelha de produção nacional com consistência e longevidade.
A Comunicação social, debatida nesta sessão parlamentar, a pedido do maior partido da oposição, comportaria uma análise séria e alargada dos canais abertos estrangeiros. Uns a impor Salazar, outros a passar igrejas escusas. Entretanto, temos assistido ao mais do mesmo, com as duas bancadas parlamentares a passarem ao largo das grandes invasões televisivas.
Noam Chomsky e Pierre Bourdieu escreveram sobre tais perigos. Por cá, o silêncio dos "nossos" inocentes. Nunca saberemos se por falta de faro ou de vontade política…

Jardim


...
Sinto, quando me dás
tua mãos, como se um limo
que rouba sol à água,
manchasse meu espírito.

Sentes, quando te dou
minha mão, como se um vivo
rio de claridades
limpasse teu espírito?

Juan Ramón Jimenez

13 de março de 2007

Nação Crioula

A Globalização colocou em crítica e em crise o modelo de Estado-Nação. Um pouco por todo o lado, o debate sobre a ideia da Nação e seus conceitos derivados, tais como nacionalidade, identidade nacional, nacionalismo e etc, tem vindo a ganhar ímpeto e impulso. As nações saídas de um colonialismo recente precisam deste debate. O facto de terem passado por experiências traumáticas, como a escravatura e a fome, torna imperiosa tal catarse. E as nações crioulas, oriundas da mestiçagem racial e étnica, não se podem furtar à busca incessante das suas componentes, em prol de uma sublimação de traumas e fantasmas. Entre nós, o debate sempre existiu, algumas vezes de forma espontânea, outras vezes de forma organizada, mas nunca de jeito desinteressado. A busca da nação crioula, perdida quem sabe nos meandros do nosso inconsciente colectivo, tem suscitado muita tensão entre os nossos intelectuais.
Li, com interesse, a reacção crítica do Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Reis, sobre o livro "Em Busca da NAÇÃO notas para uma reinterpretação do Cabo Verde crioulo", do investigador Gabriel Fernandes. O texto de Reis procurava desmontar e contrariar as teses de Fernandes sobre o movimento nacionalista e a própria luta de libertação nacional, liderada por Amílcar Cabral. Este contrapôs com um artigo "demolidor", cáustico e intolerante. Em boa verdade, não entro no mérito do debate, nem faço resenha crítica sobre a obra em questão, merecedora do Prémio Cidade Velha, que tive o gosto de ler.
Ao tentar apresentar uma re-leitura sobre a "Geração de Cabral", trazendo novos dados e novas leituras, Carlos Reis extrapola na afirmação que "a expectativa de tratamento científico da revisita à questão nacionalista cabo-verdiana no âmbito da luta e, desde logo, um tratamento pautando-se essencialmente por parâmetros de isenção e a objectividade possível, acabou por sucumbir perante a tentação de emprestar chancela académica a teses partidárias facilmente contrariadas por factos indesmentíveis".
Há nestas palavras um tom ressentido - se calhar, por ter sido um dos sujeitos dessa saga nacionalista. Carlos Reis tem legitimidade e pergaminhos para teses sobre o processo histórico e sociológico contemporâneo em Cabo-Verde, mas, no caso, devia prescindir de certas emoções.
E a resposta de Gabriel Fernandes alinhou pelo mesmo diapasão e chocou a muitos que esperavam do autor um "banho académico". O sociólogo, para além de responder violentamente à carta de Reis, deixou claro que quem não detém o título de Doutor não está autorizado para falar da sua tese, e nem terá capacidades de a entender. Este "statement" desencorajou qualquer resenha jornalística sobre a obra, por exemplo. O mesmo contraria a posição do prefaciador do livro que afirma claramente que "Esse cuidado de restaurador, ao construir histórias e trajectórias, confere consistência e vida aos contextos estudados por Gabriel Fernandes, tornando a leitura proveitosa e estimulante mesmo para o público não académico." O investigador contraria o seu prefaciador numa única frase da sua carta/resposta: "Habituado que está a ler manuais sob medida, não lhe exijo que compreenda uma tese feita para ser lida por especialistas".

Será que ao público não académico ficou vedado a apreciação da obra em apreço? Terão os doutos, de voz mais académica, os únicos autorizados a buscar a Nação? A existência de sérias rupturas sobre as especificidades e o percurso da nação cabo-verdiana, bem como a necessidade urgente de mais ambiente académico (não desvinculado da pedagogia), onde impere a crítica e o debate descomplexado são as minhas certezas sobre o tempo em que vivemos. Com devido respeito pelos debatedores, diria que, em democracia, nem os juízes estão imunes a juízos dos mais simples cidadãos. Os cientistas tampouco...

Aly Keita e CCF



Certamente que muitos se lembram do balafon desse senhor. Ali Keita participou no Fesquintal de Jazz, na Cidade da Praia, em 2002. Hoje à noite actua no Tabanka Mar ao lado do saxofonista francês, Vincent Mascart, e do baterista argelino, Karim Ziad. É mais um griot (contador de histórias), desta feita da Costa do Marfim, que se associa, assim, ao Jazz na Cidade. Um evento de grande valor que o Centro Cultural Francês promove quinzenalmente há quase um ano. Na semana passada, numa parceria entre o CCF e o Festival Março mês de teatro assistiu-se, na Praia e no Mindelo, ao memorável show de um outro griot senegalês, Ablayé Cissoko. Esses dois músicos que entoam histórias e lendas fazem parte de um claro movimento de resgate e reelaboração de ritmos tradicionais africanos, visível na última década.

Não seria inoportuno destacar aqui o papel definidor da agenda cultural da capital, assumido, paulatinamente, pelo Centro Cultural Francês (CCF), com o merecido mérito para o seu director, David Fajolles. Para além de trazer artistas de fora, o CCF promove espectáculos de grupos nacionais, muitas vezes em parceria com o Tabanka Mar, o Palácio da Cultura Ildo Lobo, e o Centro Cultural Português. Aliás, esse intercâmbio é outra novidade dessa direcção, já que anteriormente havia uma fraca colaboração entre os centros culturais.

CCF continua a ser o único point cultural desta cidade, cuja agenda se destaca pela sua fidelidade e diversidade. Na semana passada promoveu também uma exposição-venda de bijuteria tuareg do artesão do Niger, Alhassane Atti.

12 de março de 2007

Da escravatura



(…)

Por quê, de todos os países implicados na venda de carne humana – a exemplo da Inglaterra, da França, da Holanda, da Espanha e mesmo Estados Unidos da América -, Brasil e a sua contraparte, Portugal, são os mais recalcitrantes no aceite à sua culpa, não apenas moral mas econômica, sobre as condições miseráveis impostas aos afro-brasileiros? Será por que as elites de mando nesses países, e particularmente no Brasil, trabalham com a hipótese da amnésia como componente fulcral da memória histórica que marca a nossa trajetória social?

Passa da hora de o país que até por volta de 1880 mais importou e se utilizou do comércio e da mão-de-obra escravas da África para se constituir como Estado (Brasil, hoje uma das mais importantes economias emergentes do mundo capitalista), ser chamado à responsabilidade de que tanto se esquiva. Acionar nos tribunais locais e cortes internacionais tanto o Brasil quanto Portugal, inclusive setores econômicos privados e públicos herdeiros do tráfico, exigindo indenização material (inclusive em dinheiro) para os afrodescendentes, é meta que neste ano de 2007 pretendemos atingir, retomando uma luta iniciada em 1993.

Para isso estamos montando o comitê Reparação é Justiça Brasil (RJB), buscando apoios internos e no exterior. Devemos, como primeiro passo, articular um bate-papo entre os interessados no debate, a ser realizado até o final de abril de 2007 na cidade de São Paulo. Adesões e contribuições, de todas as cores e credos, evidentemente são bem-vindas! Tal debate somente será possível com a conjugação de todos e todas as forças interessadas.

Fernando Conceição*,
março 2007.

* Professor na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia - Brasil

9 de março de 2007

Soncent... de tudo um pouco


São Vicente vive um momento interessante. Quase um revivalismo claridoso, embora hoje em dia a dinâmica cultural, mesmo aquela cosmopolita, se tornou multi cêntrica. A cidade do Mindelo, graças ao frisson do teatro em Março, obriga a um olhar curioso e crítico. Para além do Carnaval e do Festival da Baía das Gatas, o Mindelact é outra actividade que lhe adiciona selo de qualidade e toda a agitação inerente. O resto, são os ateliers dos artistas plásticos, os bares com música ao vivo e a convivialidade dos encontros na praça, aspectos que se transformaram no pitoresco do Mindelo. E, a par da pequena grandeza desta linda cidade, a grande riola do meio afinal pequeno, onde não faltam manifestações de bairrismo, ressentimento e saudosismo…
Um encontro promovido, esta semana, pela sociedade civil local agitou os ânimos, tendo como a bandeira a necessidade de preservação do património. Por cá se discute…
Não se fala de outra coisa, que não os artigos de Abrãao Vicente, artista plástico de Santiago, sobre o Carnaval Mindelense. Entretanto, meio anonimamente um artista local assume que Abraão Vicente é dos poucos que escrevem de forma respirável, mesmo que dele se discorde. Paradoxal e interessante…cosmopolitismo oblige.

1 de março de 2007

Simpósio

Em virtude da colisão das datas do Centenário do nascimento de Baltazar Lopes, em S.Nicolau, e do Simpósio sobre a Geração do Movimento Claridoso, na Praia, a realização deste foi transferida para os dias 27, 28 e 29 de Abril.

Tensão na Cultura

ExampleAlguns ruídos, aqui e acolá, revelam tensões e conflitos no sector da Cultura. Refiro-me ao sector público da Cultura, pois o campo cultural, dinâmico como é, revela-se saudavelmente conflitual. A polémica em torno da realização de um Seminário sobre a Claridade na Praia instalou-se nos últimos dias. Artigos de jornais, conferências de imprensa e bocas pelos bares da vida. Uns contra. Outros a favor. Há também os indiferentes, onde me incluo.
Antes desta última polémica, o edil de São Nicolau chamara atenção, com alguma propriedade, sobre a colisão das datas. Parece ter havido conciliação, pois consta que o Simpósio da Praia foi escalonado para fins de Abril e o dia do centenário de Baltasar Lopes será festejado na sua ilha natal. O que parece ter ficado em aberto foi a polémica entre Tito Paris e Manuel Veiga. O Ministro da Cultura não deveria ter escrito aquele artigo resposta. Fazê-lo não é bem a função do Ministro, quando tem um Gabinete para prestar certos esclarecimentos na imprensa. Cada coisa no seu lugar, convenhamos. Mas aquela restituição do cheque, em parangonas de imprensa, também não lembrava ao diabo. Nem parece do Tito Paris, a voz que tão bem entoa “dança ma mi criola”.
O mais caricato terá sido a cerimónia da entrega do prémio no Carnaval mindelense. O Ministro foi impedido de entregar o 1º Prémio pela edilidade local.
Algumas birras pairam no ar, se calhar fruto de frustrações e algumas expectativas criadas. É que o Ministro da Cultura se ausentara por meio ano, por motivo de doença. Pedira até demissão… Nesse meio tempo, as especulações correram à solta e surgiram vários ministeriáveis para o substituir. Alguns com alguma lógica. Outros sem lógica nenhuma. Mas no fim, o Ministro reapareceu, disposto a continuar.
Segundo depreendo (posso estar errada), a celebração nacional da geração claridosa, a oficialização da língua cabo-verdiana, Cidade Velha a património universal, por incrível que pareça, ainda incomodam por cá. E o resto, a novela de sempre …