11 de abril de 2007

Reminiscências


foto daqui
Choca-me a notícia da chegada de mais uma embarcação clandestina às ilhas Canárias, cheia de africanos, inclusive mulheres e crianças. Esse facto faz-me lembrar a escravatura. A empreitada mais desumana que o mundo já assistiu, e que deveria ser considerada a maior vergonha mundial de todos os tempos.
Ainda hoje, esses barcos negreiros continuam a circular. Os seus capitães e passageiros são interceptados em alto mar. Tal gente nem chega a conquistar o que há cinco séculos foi possível: um porto.
Há coisas que chocam. Parafraseado uma ilustre caseira, “preciso descobrir o que me liga à escravatura”.

A ilha

Aproxima-se mais um 1º de Maio, data, para mim, mais do que dia dos trabalhadores, mas do padroeiro da cidade que me viu nascer. Assistir à missa e à corrida de cavalos eram as únicas actividades que, enquanto criança, estavam ao meu alcance. Lembro-me da festa que era a chegada de gente da Praia, e principalmente dos grupos musicais, ora Gama 80, ora Bulimundo, ora Finaçon.
Outra novidade eram os famosos “carros gaiola” para prender “piratas” que chegavam da Praia, acompanhados de reforço policial. A chegada dos cavalos, principalmente de Santo Antão e S.Vicente, igualmente fazia parte da movimentação de San Filipe. A dinâmica das barracas nas feiras era diferente, mais saudável e mais festiva. Lembro-me de padres a venderem nas barracas das Cáritas. Hoje, não consigo imaginar um padre nos bailes do Presídio.
A idade não me permite muitas ginásticas remanescentes, mas lembro-me do almoço no Instituto da Solidariedade e da movimentação, verdadeiramente popular, que ali se dava.
Depois de 91, tudo mudou. Pela primeira vez, nesse ano, dois grupos musicais se deslocaram ao Fogo e num acto insólito aconteceram duas feiras - uma do MPD na praça do Presídio e outra do PAICV no Instituto. Era o que se dizia à boca pequena e o alinhamento dos militantes e simpatizantes veio a comprovar isso.
Nos anos seguintes, as feiras duplas não se repetiram, mas nada ficou como dantes. Estranhamente, as conhecidas vozes do Movimento para a Democracia na Ilha, deixaram de participar nas Festas de S.Filipe. Depois de alguns anos de ausência, passei a frequentar com alguma assiduidade à Bandeira, e constactei a continuada descaracterização. Reparei também que são poucos os residentes que participam no almoço do grande dia, uma festa só para convidados. A bandeira de S.Filipe nasceu numa sociedade escravocrata e fortemente desigual. Factos que não podem ser perpetuados, em nome da tradição. Ninguém deve sentir-se dono da Bandeira de S.Filipe, e nem à margem dessa festa que é de todos nós.
1º de Maio é uma data que interpela a todos os filhos do Fogo. E, por arrastamento, a todos os cabo-verdianos.

2 comentários:

Rui Guilherme disse...

Assisti às festas de S. Filipe apenas em 1999, 2000 e 2001, e nessa altura também os preços dos bilhetes para os bailes no Presídio funcionavam, para muitos, como mecanismo de selecção e exclusão. Há dias, a propósito do Bitú, de Leão Lopes, Abílio Hernandez dizia-se surpreendido pela participação da cidade do Mindelo no desfile de Carnaval, ao contrário do que acontece nas grandes avenidas do Brasil. Será parte dessa aliança entre a cidade e a festa que parece fracturar-se em S. Filipe? (E ela existe mesmo em S. Vicente, como sugere o filme/documentário de Leão Lopes? A pergunta não é retórica, é que não conheço o Carnaval de Soncente).

pura eu disse...

Rui Guilherme, no caso de S.Filipe me parece existir uma fractura cada vez maior entre a festa e as gentes da cidade. Não posso dizer o mesmo do carnaval do Mindelo. Desconheço em pormenor as subtilezas dessa festa.