9 de março de 2010

Perdemos o missionário













*Aprecio o silêncio de certas ilhas, como de S.Nicolau e da Brava, e é precisamente nesses lugares onde, por razões pessoais, tenho tido maior contacto com a fé, particularmente com alguns padres.

O dedo de prosa que tive com o Padre Mauro, de 88 anos de idade, 45 em Cabo Verde, foi particularmente fascinante. Desta feita, fomos além do mero cumprimento e a nossa troca de ideias fez brilhar os olhos desse eterno habitante do Seminário-Liceu.

Um pouco da sua fascinante trajectória. Padre Mauro saiu da Itália numa missão dos Capuchinos para a Ilha do Fogo com apenas 30 anos, em Março de 1949. “Vim num barco mercantil e o meu primeiro contacto com Cabo Verde aconteceu em S.Vicente”. O cenário de desolação foi o primeiro choque, diz. Não saiu do barco, e na noite de 31 de Março seguiu para a Praia onde foi recebido pelo bispo hesperitano, D. Faustino Moreira dos Santos.

Da Capital rumou para S.Filipe numa embarcação de nome Senhor das Areias, a 8 de Abril de 1949.À chegada em S.Filipe estava a ser aguardado pelo padre Luis, que vivia nos Mosteiros. “Foi a primeira vez que andei numa mula”, conta. Foram dois dias de viagem, de S.Filipe para os Mosteiros.

Esse missionário lembra, com detalhes, a erupção vulcânica, ocorrida a 12 de Julho de 1951. O agente agrícola na Ilha, Sr. Leonel, o administrador, Sr. Luis Rendall, e os reverendos Piu e Luis foram as primeiras pessoas a prestarem socorro aos sinistrados de Chã das Caldeiras. Conta, em tom jocoso, a saga dos trabalhadores que tiveram de abrir a estrada depois da erupção e que, na hora da merenda, aqueciam a comida nas lavas.

Ah, antes que me esqueça! Ele remata também que, na época, só existiam três automóveis na Ilha do Fogo, e que nos Mosteiros, onde vivia, não chegou a ver carro algum. Havia um velho camião que pertencia a Sr. Augusto Vasconcelos, precisa.

Do Fogo, o Missionário viajou para a Ilha do Sal, onde chegou a celebrar o centenário da Nossa Sra da Piedade, em Santa Maria, com a saudosa presença do Sr. Bonafoux, o empresário da Salins du Cap-Vert. Essa capela, afirma, foi construída por um senhor conhecido por Duro.

Permaneceu no Sal por 5 anos, num tempo em que as missas ainda eram rezadas em latim.
Esteve também na Boavista, por 4 anos.

Para S. Nicolau veio em dois tempos diferentes, perfazendo ao todo 23 anos, e é aqui, no silêncio da Vila Ribeira Brava, que pretende passar os restos dos seus dias.

Foi uma conversa onde se juntaram o passado e o presente. E as recordações fizeram-se naturalmente. “Gostava das pessoas. Tinham um respeito ilimitado para com os padres”, afirmou. “Havia uma radicalidade de fé no povo”.Transcrevo estas linhas soltas, tal como saíram da boca do Missionário. Ele teve necessidade imperiosa de as contar. E eu um grande prazer de as escutar. Pairando nesse diálogo, o élan do silêncio de certas ilhas…

* Este texto foi publicado n´Os momentos em 2006 com o título Conversa com o missionário. Padre Mauro faceleu, ontem, em Torino, Itália, onde se encontrava há quase dois anos em tratamento médico.

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