4 de outubro de 2005

Viagem ao miolo de Cabo Verde

Foto: Jorge Marmelo
Crianças di praiaCabo Verde não é África, lemos e ouvimos dizer por mais de uma vez. É capaz de ser certo. Mas “nun tardinha na kambar di sol”, conforme diz uma morna de B. Leza, vendo os rostos dos negros brincando na areia escura das praias da cidade da Praia, conversando com os camponeses que regressam das fazendas da costa Leste da ilha de Santiago, com as moças equilibrando baldes de água no alto da cabeça, ou deixando o olhar flanar pelos mocetões que fazem ginástica diante do mar da Laginha, no Mindelo, apetece que África pudesse ser toda como Cabo Verde. Pobre, é certo, mas também morna, amena, bela, sem pestes nem guerras. “Terra sabi”, como no poema de Joaquim Manuel Andrade.
Os turistas são como são. E, quando se lhes fala de Cabo Verde, imaginam, como se acometidos por um reflexo pavloviano, praias de areia branca e mar azul, habituados que estão aos folhetos turísticos dos operadores que instalaram nos arredores de Santa Maria do Sal uma cidade de hotéis e “resorts”, “bungalows”, lojas de “souvenirs”, apoios de praia, estabelecimentos de aluguer de pranchas de surf e “buggies”, lambretas e bicicletas. O paraíso turístico, tal como o imaginam os ocidentais nos seus mais plastificados sonhos, existe também em Cabo Verde, rodeado, porém, de um terreno árido e desértico, onde quase nada medra. Tão inóspito que parece bonito.
O paraíso turístico existe e, diga-se, ainda está a crescer. Nos próximos meses deverá, por exemplo, abrir o gigantesco e pavoroso Club Hotel Riu Funana, com duas mil camas e a arquitectura de Medina árabe que um grupo económico espanhol teletransportou para o deserto da ilha do Sal. “Porque é que eles (os italianos) não pedem para nos fotografar?”, pergunta, visivelmente irritada, Liliana, de 13 anos, depois de, com um irmão mais pequeno ao colo, ter sido rodeada por um exército de câmaras fotográficas. Dizer o quê? Afixado com fita-cola na parede do fontenário da vila portuária de Palmeira, um cartaz anuncia o “grande espectáculo” de Nelo Jackson, imitação local do norte-americano Michael. Os italianos passam à margem.
Para aqueles que viajem para “Kabiverdi” para conhecer Cabo Verde tal como o país de facto é, está, portanto, na hora de fazer como o capitão Kirk no série televisiva “Star Trek” e pedir: “Beam me up, Scotty”. Ou, melhor ainda, entrar num barco ou num dos acanhados ATR-42-300 da TACV que asseguram as ligações aéreas entre as ilhas e ir à procura do espírito da “morabeza” e de tudo o que de mais autêntico existe nestes nove grãos de terra semeados no Atlântico: grogue, ponche, sopa loron, cachupa, atum, fontenários, camiões-cisterna, mangas miúdas, mornas, vinho do Fogo, coladeiras e sorrisos alvíssimos. “Tut dret?”. Bate tudo certo, sim. O povo de Cabo Verde é pobre, mas tem a maior das riquezas: sabe sorrir. Leia Mais

Texto de Jorge Marmelo, publicado no suplemento Fugas do Jornal Público, no dia 26 de Agosto de 2005.

1 comentário:

Silvino Évora disse...

Um belo olhar sobre o arquipélago. O autor conseguiu transportar-me para dentro da atmosfera global cabo-verdiana.
Bons "Momentos"