20 de julho de 2009

MENTE BRILHANTE

CHICO BUARQUE




















(…) A MEMÓRIA É DEVERAS um pandemónio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode é alguém de fora se intrometer, como a empregada que remove a papelada para espanar o escritório. Ou como a filha que pretende dispor minha memória na ordem dela, cronológica, alfabética, ou por assunto (…)

Este é um passeio pelo enredo de “Leite derramado”, último livro de Chico Buarque. Quando terminei de o ler balbuciei para os meus botões: espectáculo! Assim reajo quando um livro me extravasa as expectativas. As latitudes que me prenderam: a forma como o autor conta o percurso de um país, (O Brasil) através das memórias de um velho aristocrata decadente, num monólogo absoluto, nele despontando a narrativa.

Num leito do hospital do Rio de Janeiro, um velho da linhagem D`Assumpção, genealogia de família tradicional, resiste em desperdiçar os seus últimos dias como um anónimo e decide contar as suas lembranças a quem o quisesse ouvir - os médicos, a enfermeira a quem chega inclusive a prometer casamento e à filha que o manda internar, entre outros.

O velho Eulálio, narrador e protagonista, por sua vez, escolhe um alter-ego, a esposa Matilde, de quem guarda as mais belas e tristes recordações. Igualmente, retive como brilhante o retrato de todo o fausto e requinte vivido entre Brasil e Europa, passando pela política, pelas relações entre classe e raça, em que o amor de Eulálio e Matilde fenece com a sensação de desolação eterna e absoluta. Diz o texto que Matilde foge, se apaixona por outro, morre num manicómio… enfim, meandros da imaginação de um velho derrotado pela vida.

“Leite derramado” não é (auto) biográfico. É narrativa existencialista. Com tudo o que de realista e de fantástico se nos empresta a existência. As lembranças do velho Eulálio são desconexas, anacrónicas sem o mínimo esforço cronológico, mas a sua força psicológica é existencial.

Chico Buarque reafirma, neste romance, que, para além de conhecedor profundo do processo histórico brasileiro, é um “caçador de heranças” culturais, sociais e familiares. Ironizando sobre o manancial das heranças com que promove o seu processo criativo, ele próprio diria que “tenho uma mãe centenária”, o que, na minha opinião, mexe com qualquer pandemónio da memória

o título: com devida vénia à procedência…

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