30 de dezembro de 2008
Da memória, dos rituais, dos sons aos livros… em 2008
1. Um dos projectos mais pendentes de que tenho memória em Cabo Verde foi o Museu Municipal de S. Filipe, daí, também, o seu ineditismo. A restauração do sobrado di nha Francisquinha (nome popular), a recolha dos objectos etnográficos e a efectivação do protocolo entre a Câmara Municipal de S. Filipe e a Câmara Municipal de Palmela (Portugal) duraram 12 anos. Finalmente, o espaço foi inaugurado no passado dia 13 de Dezembro, e a partir de meados de Janeiro de 2009 estará aberto ao público das 10H à 15H, e das 17H às 20H. De recordar que o Museu situa-se mesmo ao lado da Casa da Memória, outro espaço etnográfico de grande servidão aos turistas e estudantes na Ilha do Fogo. Expectativa: que o Museu da Cidade receba muitos turistas e curiosos e trabalhe em sintonia com a Casa da Memória.
2. Os momentos tristes também podem ser grandes, pela simbologia que carregam. No ano 2008 faleceu na Cidade da Praia, Francisco Fontes. O decano das bandeiras da Ilha do Fogo. Nhô Mulato, como era conhecido, faleceu com 103 anos, e desde os seus 11 anos era o Cordidjêru (chefe) da maior festa popular de Cabo Verde. A Banderona que celebra S. João, acontece durante 22 dias antes do Carnaval na zona de Campanas Baixo, Fogo. De recordar que esta bandeira é secular e foi fundada por três famílias originárias da região de Campanas, o que obriga a que “a bandeira seja tomada” apenas por membros dessas famílias. Expectativa: Que mesmo sem a figura de Mulato a Banderona continue a preservar a memória, a resgatar valores, e a perpetuar a união.
3. Faleceu Manu Mendi, tido como o último tocador e construtor de Cimboa, instrumento tradicional usado no batuque. Permitir que se perca um legado é um pecado. Expectativa: que se dinamize seriamente a convenção da UNESCO sobre a Diversidade Cultural rectificada no âmbito da CPLP, antes que outras perdas do tipo se repitam. Penso nas várias manifestações de cariz popular e religiosas existentes em ilhas como S. Nicolau, Brava e Santo Antão. Recordo-me de “Canizade” na Ilha do Fogo que hoje praticamente ninguém sabe do que se trata.
4. A inauguração do Museu de Tabanca em “Tchan di tanqui”, e do Centro Cultural Norberto Tavares no coração da Assomada carregam, do nosso ponto de vista, muita simbologia: imortaliza um ritual e perpetua um homem. Expectativa: 1. alma e muita cultura aos “dois chãos” que representam o lado mater desta nação crioula. 2. Auguramos bom porto para a emblemática casa onde residiu Amílcar Cabral em Achada Falcão; e a prometida Casa di Morgado (na antiga e enigmática casa do Morgado da Ribeira dos Engenhos).
5. Foi anunciada o início da obra para a recuperação do antigo Orfanato de Caleijão, que vai albergar o Museu Sacro em S. Nicolau. Já é repetitivo falar e escrever sobre as pérolas sacras (objectos do século XVIII) que estão depositadas numa das salas do Seminário-Liceu, (os objectos em ouro estão guardados numa caixa do banco) da Ilha de Chiquinho. Expectativa: Que a obra avance logo. Caso contrário, não teremos museu algum, já que os objectos não têm merecido devido cuidado.
6. A Língua cabo-verdiana foi tema, e conheceu alguns progressos em 2008, apesar da “ala regressiva”. O debate sobre o crioulo deve ser alargado, (e a língua é pujante, sabe-se) mas a sua instrumentalização e posterior oficialização interpelam questões de ordem técnica e política. Expectativa: que não tenhais receios.
7. O CD Spiga de Princezito é um corolário de cores, ritmos e cheiros. Foi a prenda que mais ofereci no ano de 2008.
8. José Luíz Tavares foi galardoado pelo Ministério da Educação do Brasil, com o prémio «Literatura para todos» pela obra inédita «Os Secretos Acrobatas». Em Novembro deste ano lançou na 8ª Bienal internacional do livro de Ceará a obra intitulada «LISBON BLUES seguida de DESARMONIA» (dois livros inéditos, reunidos num único volume). Em Moçambique, José Luíz Tavares lançara Cabotagem & Ressaca, publicado pela Escola portuguesa de Maputo: uma selecção de poemas de «Paraíso apagado por um Trovão», «Agreste Matéria Mundo» e inéditos.
9. A vitória de Barack Obama foi um momento ápice na história da humanidade (sim, senhor). Expectativa: que são se deposite demasiadas expectativas nas suas costas, nem pressões “incompreendidas” como as que já se notam por causa dos ataques em Gaza.
10. O falecimento de Miriam Makeba, a diva africana do Século XX, foi um forte aperto nos nossos corações. Expectativa: sejamos firmes, todos e todas.
11. De Francisco Fontes (jornalista português) recebi isso: “Em 2008 realizámos algo que, infelizmente, não é muito comum. Pela união de disponibilidades e de vontades, generosamente, conseguimos criar uma obra capaz de divulgar alguma da nova e boa poesia cabo-verdiana, com “Destino de bai! Foram projectos de crença, para os quais cada um teve uma participação decisiva. Cada contributo enriqueceu o projecto e tornou-o viável, e foi indutor de outras participações. Parece demasiado romântico, ou da dimensão do utópico, mas foi realizado. Conseguimos!” Expectativa minha: um lançamento em Cabo Verde em 2009, já que apesar de ter sido uma das participantes, ainda não tomei contacto com o livro.
Senti falta de ...
Mário Lúcio: Gosto dele no palco a cantar, e gosto das palavras do escritor (como de as ler). Por incúria minha, talvez, não tive esse prazer. Hoje, cruzei-me com ele no seu carrinho na descida de Achada Mato.
Matilde Dias: Muitas histórias e muitas reportagens ficaram pelo caminho sem o toque da Matilde.
Beto Dias: O novo disco já está pronto e só sai em Janeiro. Dias se distanciou das características que o destacavam nos Rabelados e nos seus primeiros dois discos, mas deixa falta.
Poesia, e de ti.
Receita de ano novo
Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Carlos Drummond de Andrade
24 de dezembro de 2008
Aquele abraço
23 de dezembro de 2008
O crioulo: da diversidade à oficialização
Até hoje me lembro da expressão de estranheza de uma prima badia,
quando ouviu, pela primeira vez, de mim a palavra "karabon" na variante do crioulo do Fogo: carvão em português, e "karvon" ou "karbon" na variante de Santiago. E de forma recorrente ocorrem-me palavras absolutamente típicas, senão "endógenas", que evidenciam a peculiaridade do crioulo falado no Fogo. Mário Fonseca disse há dias, numa mesa informal, que o crioulo do Fogo é tão duro, a ponto de os foguenses optarem por falar português, mormente em locais públicos, como forma de esquivar a essa "dureza". Não concordei e nem concordo com tal afirmação, mas admito que tenhamos saídas absolutamente únicas no nosso crioulo. Há dias na zona de Ponta Verde, no Fogo, ouvi com satisfação a palavra "paranpôbu" (parasita) e ocorre-me aqui "djongôtô" (de cócoras). O geógrafo José Maria Semedo escreveu que a Ilha do Fogo é uma extensão rural de Santiago, e é uma tendência, de facto, que se verifica muito na língua. Existem imensas similitudes entre o "crioulo fundo" de Santiago, (entenda-se rural), e o crioulo do Fogo falado pelos residentes que não estiveram expostos a influências de outras variantes ou de línguas outras. É o crioulo tão vernacular quão veicular que nos importa, hoje como nunca, acariciar, proteger e promover – e porque não? -, numa oficialização que respeite a diversidade e a riqueza deste elemento cultural que marca a Nação Cabo-verdiana, desde o século XVI.
imagem: magrite
18 de dezembro de 2008
O bilinguismo adiado
Depois de uma entrevista à linguista Dulce Almada, em Cabo Verde por estes dias, ocorreu-me escrever umas linhas sobre um argumento muito utilizado pela ala contra a oficialização do crioulo. Dizem alguns que a assumpção do crioulo passa pelo seu uso nos médiuns considerados de prestígio: na administração, nas escolas, nos tribunais, etc., e que o exemplo deveria vir dos defensores da oficialização do cabo-verdiano, ou seja, que os defensores da oficialização deviam apenas falar e escrever em crioulo.
Há falácias a desmontar nesta ideia. Antes de mais, é importante dizer que os defensores da oficialização do crioulo não almejam o desaparecimento do português, mas sim, tratamento paritário para as duas línguas veiculares em Cabo-Verde.
O que essa mesma ala parece não querer perceber é o trabalho partilhado por todos para se chegar ao desiderato da oficialização. Ninguém questiona a "superioridade veicular" da língua portuguesa face ao crioulo, devido ao seu uso preferencial nas estruturas oficiais. Em virtude de condicionalismos históricos, esta é uma realidade com que todos convivemos. Mas vale lembrar que as coisas não foram sempre assim. Com o surgimento do crioulo no século XVI, este se afirma como a grande língua veicular de Cabo Verde. Todos, sem excepção, falaram o crioulo em Cabo Verde até o século XIX, e não se tratava de um hábito menor se expressar na língua cabo-verdiana. Foi a partir de então que, por imposições e constrangimentos de ordem política, a elite intelectual assumiu e disseminou “entre os comuns” o sentimento de inferioridade face à sua língua materna.
Apesar dos “enfrentamentos” linguísticos ao longo da história, o crioulo continua pujante e a impor-se a cada dia. Mas, é claro, eu, tu, nós continuamos a escrever em português, e a falar o português na imprensa, nas universidades e na administração, e assim vai continuar a ser. Com a assunção plena do Alfabeto Cabo-verdiano (filho sedimentado do ALUPEC, diga-se) até à instrumentalização do crioulo, do seu ensino nas escolas até às decisões de ordem política, hoje, prementes, estaremos nós ou talvez os nossos filhos a escrever e a falar sem pejo algum a língua cabo-verdiana. Nikolas Quint, investigador e linguista francês, disse numa entrevista ao Jornal A Semana Online que "Uma língua que não se ensina de todas as formas está condenada no mundo de hoje".
O nosso atraso histórico: o “acantonamento” da língua cabo-verdiana à sua oralidade. E o desafio dialéctico que ora nos impende: assumir, emproar e igualar a nossa língua materna e nacional ao português que todos falamos ou almejamos falar na sua perfeição. A não ser que haja gente seriamente apostada em perpetuar tal atraso histórico, entrando assim em disputas imaginárias e agarrando no jogo labiríntico das variantes, numa alegada atrapalhação do ensino em si, através do crioulo. Pura ilusão.
17 de dezembro de 2008
Personalidade do ano
A revista norte-americana Time escolheu o Presidente eleito norte-americano Barack Obama como Personalidade do Ano 2008, na sua já tradicional escolha anual da pessoa que mais influenciou o mundo. “Ele atingiu a América como um trovão, revirou as nossas políticas, destruiu décadas de sabedoria convencional e destronou séculos de ordem social estabelecida”, refere um longo artigo publicado pela revista.
fonte: público.pt
Nós (destes tempos)
Nestes tempos
os estrangeiros
(aqueles que
investem nas nossas almas
e na sua incólume morabeza
na sua fiável amorabilidade
na sua fatal cordialidade
e nos amamentam
com a sua chuva colorida
metálica e cosmopolita)
disputam-nos
e aos pétreos adão e eva do pico de antónio
a génese da ilha e do banho baptismal nestas plagas
e declaram-se primogénitos
e legítimos donos da distância
que vai da ourela do mar
ao cume do monte mais alto
e do suor que a história
durante tantos séculos
fez escorrer nestas ilhas
e agora nus edénicos e hedónicos
(quase adâmicos)
se transfiguram
em corpos bronzeados
dourando-se sob o sol
e os límpidos céus do sahel insular
…
Cá vamos pois
badius e sampadjudos
todos muito kuls na preservação
das indispensáveis e urbanas rivalidades tribais
sem todavia, assevera o plástico mito,
descurar a híbrida e pan-arquipelágica
descendência de pós-coloniais sampadius
e o também híbrido harém de poetusas
docemente engajadas com a sensualidade
dos corpos bronzeados e emancipados
terra-longinquamente comprometidas com versos
dilacerados de engasgamento hídrico e comiseração social
Cá vamos pois
hodiernos de semi-solidão
pendularmente cansados
marcando horas errando nas peugadas da poeira
e não sei se no humor ciclotímico da bruma seca
ou se no amor urgente e clínico dos cooperantes
dos turistas dos investidores estrangeiros dos mandjacos
dos comerciantes chineses e dos demais cúmplices
deste amado e assaz lúdico purgatório…
poema: José Luís Hopffer C. Almada
título: pura eu
imagem: Abraão Vicente
16 de dezembro de 2008
Do crioulo aos radicais árabes
1. Terminou, ontem, na Cidade da Praia, o fórum sobre a língua cabo-verdiana que juntou linguistas fundadores do ALUPEC (Alfabeto Unificado para a escrita do cabo-verdiano), professores e escritores usuários do crioulo. Sabe-se que a meta deste momento é a instrumentalização da língua cabo-verdiana no sentido da sua assumpção efectiva (nas escolas, repartições, comunicação social) e posterior oficialização. Nessa linha, o fórum trabalhou sobre os avanços e os problemas encontrados na aplicação do ALUPEC. A variante a adoptar virá naturalmente, e já faltou mais. Para já, uma notícia se impõe, na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, adoptou-se o ensino do crioulo de Cabo Verde (vide o nº de cabo-verdianos residente na América).
2. Assistindo ontem ao Telejornal da RTP chamou-me atenção o número de reportagens em áreas diversas dando conta das consequências da crise que assola a economia mundial: Instituições de caridade que recebem menos donativos, casos de vandalismo que aumentaram, Ministro das Finanças de Portugal a exigir aos bancos a cumprirem a suas obrigações cedendo crédito às empresas. Todos os dias notícias dão conta do encerramento de várias empresas em todo o mundo. Na nossa economia periférica, pelos vistos, as coisas ocorrem de forma inversa, pelo menos, a crer nos discursos que diariamente chegam às nossas casas.
3. Os radicais árabes congratulam-se com o “gesto” do jornalista que atirou sapatos ao presidente dos Estados Unidos George W. Bush, e exigem a sua rápida libertação. Pela distância simbólica que se me coloca a mim e a muitos de nós, só nos resta apreciar (no sentido pedagógico do termo) a “bravura” desses homens.
15 de dezembro de 2008
Nobas di Djarfogo
1. São Filipe ganhou nos últimos tempos novos points de lazer e comércio turísticos, o que emprestou mais vida à cidade, e contribuiu ligeiramente para o virar da página do angustiante silêncio daquelas ladeiras. No interior, as pessoas estão mais contentes com o resultado da boa azágua, e nada mais contagiante do que alegria de camponês.
2. A cidade ganhou finalmente (depois de um projecto de 12 anos) o seu Museu Municipal (no sobrado da foto). Um espaço que pretende apresentar as particularidades históricas, ambientais e culturais da Ilha do Fogo. Segundo a museóloga que trabalhou na sua instalação, o Museu Municipal de S. Filipe vai ser complementar à Casa da Memória, e não tem a pretensão de substituir as valências deste espaço, o que é muito bom. A equipa criou este blog onde pretende detalhar sobre as temáticas de abordagem do Museu.
3. "Bom doc", a nova provocação da já incontornável Cá Dja´r Fogo para projectar o novo ciclo 2009. "Expor o relacionamento entre o artista, o trabalho e a obra, ver de que maneira o corpo (as mãos, por exemplo) habita a sua pintura, a sua fotografia, o seu vídeo". A proposta arrancou oficialmente no dia 04 de Dezembro com o documentário "Pintura Habitada" sobre a artista plástica Helena Almeida.
Menos bom:
1. No Fogo, à par da falta de oportunidades típica das regiões consideradas periféricas, um outro problema afecta a população jovem local: a vontade desenfreada de emigrar para os Estados Unidos. Esse cenário é a causa maior da desmotivação generalizada na ilha, muito estribada na ausência de perspectivas e planos para o futuro.
2. A Ilha, mais do que qualquer outro sítio, continua ainda dividida por linhas partidárias, o que dificulta sobremaneira a consolidação de alguns projectos e ideias que dependem de comprometimentos mais alargados e estruturantes.
A música
O sol se levanta com as ondas que nunca dormem. É assim, sempre!
5 de dezembro de 2008
Os nós da solidão
II
Dantes havia os colonos
que alvos e algarvios
defronte das estátuas
e demais monumentos
de aquém e além-mar
bebiam sequiosos
o suco da cana
o sumo da terra
a espuma do mar
e raivosos
nos mandavam recolher
o bagaço sacarino
e as vértebras de outros restos
e em sarcasmo gregário
se reluziam ao sol
e seduziam a nua
e tisnada virgindade
dos subúrbios
II
Séculos depois
ainda alvos e algarvios
sob uma lua muito redonda
muito mais gregários e raivosos
do que dantes
por mor das colunas de fumo
que dos monumentos
se despenhavam
e despedaçavam o mar
por mor das efígies de bronze
que das penedias da cidade tombavam
os colonos
e os seus próceres islenhos
os colonos
e os seus rebentos indígenas
atravessaram o mar
velejando um ódio ainda mais amargo
e cada vez mais absentista
III
E ficámos sós
cogitando sobre os nós da solidão
e da nossa possível essência negra
E ficamos sós
reverberando ansiosos
os signos da desolação
ante o sibilino assobiar
dos alísios sobre os montes
e o oceano de todos os dias
e a sua inútil ondulação
vazia de veleiros e marinheiros
entre o cais de são januário na cidade da praia
e a foz do geba na guiné-bissau
entre a rua da praia de botes no mindelo
e o promontório do cabo verde em dakar-senegal
poema: José Luís Hopffer C. Almada
imagem: Abraão Vicente
3 de dezembro de 2008
Dias que ficam...
1. “Existe uma relação intensa entre Cabo Verde e o Brasil que se dá via Fortaleza, mas o Brasil, pelo menos, não sabe disso. Temos que fazer alguma coisa para inverter esse quadro.” Foi mais ou menos esta ideia que o director da TV Cultura, o nomeado jornalista Paulo Markun, me passou numa reunião que tivemos naquela que é, sem margens para dúvida, a TV que produz melhores conteúdos no Brasil. Essa ideia ainda embrionária pertence a uma realidade futura, mas com pernas para andar.
2. 1º Seminário de Estudos cabo-verdianos
É importante perceber que a ideia de Markun, apesar de tudo, não está longe do presente se atentarmos àquilo que acaba de acontecer na Universidade de São Paulo: O primeiro Seminário Internacional de Estudos Cabo-verdianos sob o sugestivo lema Contra Vento Pedra-a-Pedra em homenagem ao poeta Luis Romano, cabo-verdiano residente no Brasil há largos anos. Foram quatro dias (25 a 28 de Novembro) de conferências e debates centrados na literatura, e que incluiu mostras de vídeo, das artes plásticas, e da moda tradicional das ilhas, e uma feira de livros cabo-verdianos. O evento foi coordenado pela professora Simone Caputo Gomes, ensaísta e pesquisadora brasileira, considerada a maior especialista em Literatura cabo-verdiana no Brasil. Há vários anos, Caputo Gomes tem tematizado Cabo Verde em importantes universidades brasileiras, incluindo a USP, na qualidade de coordenadora de estudos da literatura africana em Língua Portuguesa.
Marcaram presença no certame escritores, poetas, artistas, jornalistas, professores, estudantes, e pesquisadores de Cabo Verde e do Brasil. O 1º Seminário Internacional de estudos cabo-verdianos da USP veio para ficar e terá continuidade nos próximos anos.
3. Museu afro-brasil
Carolina Maria de Jesus (1914-1977) – foto - é um nome lendário no Brasil, e deveria ser mais ainda, caso não fosse ela uma negra que morreu na miséria sem poder usufruir das suas reais capacidades de escritora. Ganhava a vida como empregada doméstica, e terminou a jornada terrena a catar papéis nas ruas de S. Paulo. Escreveu vários livros (inspirada em livros que lia, na sua vivência miserável, e na vida mais ao largo que seguia pelas páginas dos jornais). Uma das suas obras (Quarto de despejo) foi traduzida para 14 línguas, mas no cenário social de então nem ela mesma chegou a ter a devida percepção do seu talento. A sua obra completa (os manuscritos, inclusive) é parte do acervo do Museu Afro-Brasil, o espaço que alberga toda a temática da vida e da cultura negra daquele país latino-americano: a história, a sociedade, a culinária, a música, o teatro, a TV, a fotografia, o cinema. Uma grandiosa obra, cuja idealização e montagem contou com o empenho pessoal do curador Manoel Araújo, um destacado colecionador de artes do Brasil que ousou e conseguiu que a contribuição incontornável dos negros no Brasil não se perdesse na noite dos tempos, nem caísse no esquecimento dos dias. Um grande senhor que merece desta humilde que vos fala todo o axé do mundo. O museu afro-brasil situado no Parque do Ibirapuera em São Paulo é um lugar espantoso e encerra muitas raridades no seu interior. É ainda um espaço dinâmico com uma biblioteca (chamada Carolina Maria de Jesus), promove e sedia cursos, aulas práticas e conferências, e o mais interessante para nós, mantém uma relação interessada com a África, através das exposições itenerantes de artistas e instituições de alguns países africanos que recebe com frequência. Outra porta que se encontra aberta para os nossos artistas de fé.
4. A criança, a mulher e o cão (a ilusão dos dias)
Um retrato que apenas muda de lugar,
num espaço relacional,
traido em constância
pelo tempo,
pela sombra,
ilusório quando insistimos na sua condição
relacional
ilusório
como um retrato que muda de lugar
para preencher o vazio dos dias.
5. Os momentos depois da anunciada pausa regressa com o firme propósito de caminhar, sem nunca deixar de dobrar a esquina e interpelar os seus deuses (lembrando o poeta) ...
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