23 de janeiro de 2010
Luís Romano e os famintos de Cabo Verde
“Finalmente os pedintes ergueram-se e enfiaram-se pelas ruas do Povoado. O número de pessoas aos lamentos era enorme. Como massa escura, a leva espalhava-se pelas vielas, a mendigar pelos portões. Os cães latiam enervados. Nas janelas, atrás dos resposteiros, as donas olhavam, cheias de pena. Depois, escondiam-se nos quartos, por causa dos ruídos, e faziam paninhos de renda para serviços de chá.
Ao pé do Pelourinho, quem passasse nem já olhava por alguns corpos que vieram até lá render o último suspiro. As cenas repetiam-se constantemente e quase ninguém fazia caso; os cadáveres parte do empedrado onde tombaram.
No entanto, os sinos tocavam ave-maria, os senhores descobriam-se, faziam o sinal da cruz, enquanto os comerciantes fechavam as portas, seguravam as trancas. Da rua ouvia-se o telintar das moedas nas gavetas dos balcões e o reflexo da luz, dentro das lojas, fugia pelas frinchas das portas ou passando pelas gretas das fechaduras.
No Adro da Sé os sem-nome abrigavam-se às dezenas, unidos, aquecendo-se uns aos outros e a gemer de quando em quando. A miudagem dormia encolhendo os ombros debaixo do corpo dos mais velhos. Os piolhos passavam de um ponto para o outro, as pulgas sugavam o pouco de energia que ainda restava e as pulguinhas que deformam os pés, enchiam os dedos de casulos brancos, a desenvolver cavernas, atrofiando a marcha dos maltrapilhos.
E dentro da Sé a quietude impressionava. Nos nichos, nas redomas, nos andores, as imagens de santos contemplavam o vazio com olhos cheios de bondade.
Na rua, contra a porta, a cacimba atormentando os desamparados.”
Trechos de “Famintos”, um livro referência: um retrato documental, jornalístico (se se quiser), umas vezes lírico, outras subjectivamente narrado, deixado por Luís Romano… (1922 - 2010)
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