5 de junho de 2008

Um cego

Old man
















Não sei qual é a face que me mira
quando miro essa face que há no espelho;
e desconheço no reflexo o velho
que o escruta, com silente e exausta ira.
Lento na sombra, com a mão exploro
meus traços invisíveis. Um lampejo
me alcança. O seu cabelo, que entrevejo,
é todo cinza ou é ainda de ouro.
Repito que perdi unicamente
a superfície vã das simples coisas.
Meu consolo é de Milton e é valente,
porém penso nas letras e nas rosas.
Penso que se pudesse ver meu rosto
saberia quem sou neste sol-posto.

Poema: Jorge Luis Borges
Tradução: Renato Suttana

3 comentários:

Alex disse...

Estranho. Muito estranho este teu Post. Na verdade o Post nada tem de estranho, mas é uma grande coincidência. É que por estes dias ando a escrever sobre esse tema. O rosto humano. Um desafio pescado lá no Blog do Paulino, que tem publicado fotos de belíssimos rostos (todos os rostos são belos se não vistos sob os clichés estéticos, porque todos representam um mundo, um livro a escrever-se todo os dias). Depois de lido o Borges, não sei se me motivo mais ou se me encolho (risos). Sei não!
Cá vai um cheirinho só para ti:

Sobre o teu rosto mulher,
ergue-se a casa de meu pai
aquele cujo nome de mim
se escondeu como uma recusa,
a amarrotada cama dos dias
onde a pele antiga do tempo
apodreceu sob a casca amena,
rumores daqueles que em nós
sobrevivem com seus cheiros
domésticos, animais de estimação,
flores muchando entre páginas.

De que nocturno pássaro
é este véu de asas em par
que te cobre, qual presságio,
a face.
Alex
JUN/08

Fica bem
ZCunha

Anónimo disse...

Não há razão para encolho, e os doutos haveriam de concordar comigo. Antes de mais, agradeço esta dedicação de palavras tão contemplativas e preenchidas. Diria até que complementam a incessante auto retratação (ou será a sua recusa?) da poesia de JLBorges. A capacidade de olhar rostos denuncia, além de tudo, uma estranha (porque rara) sensibilidade.
Um abraço e bom fim-de-semana,

Margarida

Alex disse...

Este poema está ainda na fase da oficina (podar, limar, polir). Enviei-o porque achei interessante a coincidência. Faz parte de um grupo mais vasto de poemas que se destinam a celebrar o rosto de Nha Dadá que podes ver no Blog do Paulino. O trabalho tem neste momento um título provisório: "7 mapas para a história de um rosto".

Abç's
ZC