21 de agosto de 2008

Há tempo que nunca passa

Santa Lúcia era uma cidade pacata, mas tinha cinema três vezes por semana. A qualidade dos filmes era duvidosa, e os frequentadores da tosca sala, na sua maioria, tinham uma preferência desmesurada por tramas de acção, a ponto dos seus gestos e piropos concorrerem, em grau e número, com os burlescos golpes dos lutadores na tela. Os gritos e os comentários inoportunos desse público faziam parte do ambiente, e os espectadores menos comuns, como a Letícia e o seu professor Gonçalo, estavam obrigados a fingir-se de distraídos nos seus assentos, ou a ensaiar um sorriso cordata de vez em quando.
Letícia era espectadora assídua dos filmes. Aquilo tudo a impelia para um mundo imaginário, mais ao largo, que acreditava poder descobrir e explorar. Nunca estava ali diante dos filmes que raramente a tocaram, mas algures para onde a sua imaginação esvoaçante a conseguia transportar. Gonçalo, jovem, bonito, solteiro e inteligente era o professor preferido da Letícia, amigo a ponto de suscitar em terceiros outras leituras.
Os dias e as semanas beiravam, para os dois, a uma intensa e agradável mesmeidade: Letícia e Gonçalo juntos a caminho do liceu, na biblioteca municipal, no cinema, na praça a conversarem sobre a capital, filosofia, Paris, que ele conhecera e ela não, a trocarem discos de Jacques Brel, Elsa Lunghin, Phil Collins, Mark Knopfler e Jean Jacques Goldman.
Gonçalo estava de regresso à Santa Lúcia, e Letícia tencionava partir, mas a situação nunca fora motivo de desencontros entre ambos, pois tinham o poder de viver em instantes a imensidão.
Letícia partiu, como projectara, e foi obrigada a abandonar a rotina mais apetecível de que algum dia tivera, mas Gonçalo permaneceu na Cidade. Os anos se passaram e ambos se fizeram, seguindo as pegadas dos próprios destinos.
Os filhos, os amores e as novas responsabilidades ocuparam o espaço daqueles anos de amizade cúmplice que a memória se encarregou de perpetuar.

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